22 junho 2015

"Carol" ou "O preço do sal", de Patricia Highsmith

postado por Manu Negri

A edição do meu livro é tão feia que dessa vez não tem foto, tem montági tosca
Eu nunca tinha ouvido falar de Patricia Highsmith até o Festival de Cannes deste ano.
Pera, peraí. Livro? Festival de cinema? Como assim? Assim: entre os filmes da mostra competitiva, que disputavam a Palma de Ouro, estava Carol  adaptado então do livro que é o tema da resenha de hoje. Ah, bom, agora sim. Como o filme foi muito bem recebido por lá, tem a musa Cate Blanchett no elenco e ainda rendeu o prêmio de Melhor Atriz à Rooney Mara, mas só tem previsão de chegar aos cinemas no final do ano, resolvi tirar um tempinho pra ler a obra que lhe deu origem.

Patricia Highsmith, quem iniciou a carreira na década de 1940, ficou famosa pelos seus thrillers. "O talentoso Ripley", "O sol por testemunha" e "Strangers on a train", que foi parar nas telonas dirigido por ninguém menos que Alfred Hitchcock como "Pacto sinistro", são alguns dos sucessos. Mas não, Carol não tem nada a ver com romance policial, só romance mesmo, desses de amor e beijo na boca: é a ovelha colorida da família por ir contra a maré do seu estilo marcante, rotulado depois como uma "literatura cult lésbica". Publicado originalmente como "O preço do sal" e sob o pseudônimo de Claire Morgan, pelo contexto ultraconservador da época, Carol alcançou sucesso somente um ano depois, com a venda de quase 1 milhão de exemplares.

A sinopse (ufa): Nova York dos anos 50. Therese Belivet tem 20 anos, namora um rapaz por quem não está apaixonada, sonha em ser cenógrafa, mas, para juntar dinheiro e estudar, precisa manter seu trabalho entediante como vendedora numa loja de brinquedos. Tudo em sua vida muda quando uma mulher mais velha e muito gacta chamada Carol resolve comprar uma boneca para sua filha nesta mesma loja.

Toda a história é contada sob o ponto de vista de Therese, fazendo de Carol uma personagem misteriosa até mesmo pra nós, leitores. Sabemos explicitamente o que acontece com Therese, o que a faz querer rever aquela mulher elegante que entrou na loja, o que a atormenta; mas, quanto a Carol, tentamos entender suas emoções através da sutileza de seus gestos requintados, sua relação com a filha, o ex-marido, a amiga Abby e a vontade de passar o tempo com Therese, por mais que ambas sejam de classes sociais e personalidades tão diferentes.

Há uma passagem que achei muito interessante por julgar ser uma metáfora do sentimento que ela estava desenvolvendo por Carol. Quando Therese e Richard, o namorado, saem para empinar pipa, é como se o objeto fosse uma analogia a esse amor impensável: ele pode voar alto à medida que ela, literalmente, dá corda, ao mesmo tempo em que se sente contida pelo medo e repressão da sociedade daquele período. Por isso que, quando Richard acaba fornecendo toda a linha que podia para a pipa, quase como uma permissão, Therese fica chorosa e irritada ao fim da cena: ela está assustada.

(Pode não ser nada disso, mas prefiro pensar que é. Me deisha.)

Ganhando um Oscar aqui, dá licença
"– Já se apaixonou por um rapaz? 
– Um rapaz?– Richard repetiu, surpreso.
– É.
Talvez tenham se passado uns cinco segundos, antes que respondesse:
– Não – num tom positivo e final.
(...)
– Já ouviu falar nisso? – ela perguntou.
– Ouvir falar? Você diz, de gente assim? Claro – Richard estava de pé, enrolando a linha em forma de oito.
Therese disse, com todo o cuidado, porque ele estava prestando atenção:
– Não estou falando de gente assim. Estou falando de duas pessoas que se apaixonam de repente uma pela outra, sem mais nem menos. Por exemplo, dois homens ou duas moças."

“Carol” tem, sim, alguns problemas. A narrativa não tem nada de incrível, é lenta e muitas vezes confusa, pois troca de cena rapidamente sem que a gente perceba, não permitindo ao leitor imaginar com riqueza o que está acontecendo. Um exemplo grosseiro: Therese está tomando café, diz alguma coisa, e na próxima linha já foi dormir. O que aconteceu entre os dois momentos é você quem deduz. Em compensação, há passagens líricas muito bonitas e delicadas, principalmente quando Highsmith descreve o amor devoto de Therese por Carol e quando elas enfim ficam juntas.

O que mais gostei foi esse retrato de duas mulheres independentes que sabiam o que queriam em uma época em que o machismo e a homofobia reinavam muito mais do que hoje em dia. Ainda que expressados de forma mais subjetiva, o preconceito e a libertação sexual estão lá, lutando entre si, enquanto vemos Therese desabrochar através da forma como ela lida com seus sentimentos. "Carol" ainda conta com um desfecho surpreendente para o contexto da história, o que também me agradou.

"Era uma pessoa diferente daquela que estivera ali três semanas antes. Naquela manhã acordara na casa de Carol. Carol era como um segredo espalhando-se dentro dela, espalhando-se dentro daquela casa também, como uma luz invisível a todos, menos a ela."
"– Eu amo você. – Therese disse, só para ouvir as palavras. – Amo você, amo você."

  



UPDATE: falo sobre o filme aqui.


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