01 junho 2015

O dia em que uma coxinha quase estragou meu Carnaval

postado por Manu Negri



É provável que viajar de carro e comer sejam duas das coisas mais maravilhosas que a vida nos oferece. É verdade, também, que às vezes elas podem não andar juntas; mas aí, quando descobrimos, já é tarde demais: acabam se transformando numa dessas experiências degradantes que repassamos para as próximas gerações da família.

Era véspera do feriado de Carnaval, uma das festividades de que menos gosto no mundo; mas a perspectiva de ir para o Rio na condição de turista, deixando o samba no pé como última prioridade, parecia perfeita.

O carro com quatro mocinhas partiu antes das quatro da manhã. A estrada fluía sem problemas, o clima estava dentro do esperado e o rádio funcionava normalmente, iniciando uma viagem que prometia só momentos divertidos. No entanto, promessas existem para serem quebradas, e naquele dia esse objetivo fora alcançado com sucesso.

Depois de aproximadamente quarenta minutos, meu intestino enviou sinais de atividades extra-rotineiras. A princípio não dei muita importância e cheguei à conclusão que parecia mais óbvia: gases. Arrumar mochila e se arrumar às pressas podem fazer a gente engolir mais ar que o normal, e eu particularmente não sou a pessoa mais pontual do mundo quando o assunto é sair em horário pré-determinado.

Paramos em um posto para a primeira esvaziada de bexiga e aproveitei a deixa. Tudo certo. Ri da minha própria tolice diante deste pequeno contratempo, por achar que qualquer coisinha poderia atrapalhar nosso percurso, quando não muito tempo depois uma cólica tímida – porém, certeira – deu o ar da graça, anunciando o presságio de uma tragédia.

Não tinha erro. Berenice, segura: nós vamos bater.

O suor frio chegou dando um tapa na minha testa. Pedi pra parar novamente no próximo estabelecimento com banheiro a fim de verificar o status da situação. A amostra de análise não apresentava resultados satisfatórios. Fazendo malabarismos para evitar qualquer contato íntimo com a tampa da privada, perguntei a Deus o que eu tinha feito para merecer ser castigada dessa forma, se só O importunava durante viagens de avião – quando eu prezava muito pela minha vida acima de qualquer coisa.

Voltei para o carro com o semblante da derrota. É incrível como nessas horas as pessoas costumam não ser solidárias com você: continuam conversando animadamente, ouvindo música e fazendo planos para os próximos dias, numa clara afronta ao seu luto diante da própria estrutura física e emocional. De fato, só podemos contar com a gente mesmo nos momentos de dor, soldados.

A próxima onda de cólica quase me nocauteou. Olhei desesperada para a placa na estrada: 9 km até o posto mais próximo. Afundando os dedos no banco do carro, contei baixinho os minutos que levaram até brecarmos no BARROSÃO - POSTO E LANCHONETE, lutando contra as lágrimas que queriam vir em protesto à minha noite humilhante.

Ouvi Carruagem de Fogo tocar enquanto minha corrida até alcançar o box do banheiro ficava em câmera lenta. Depois, apenas um zumbido de silêncio. Pensei ter escutado as trombetas do apocalipse soarem em algum lugar ao longe, mas tudo em que eu conseguia me concentrar era no completo e total alívio do momento. Uma luz branca e forte se esgueirou pelas frestas da porta; achei que era Jesus me conduzindo ao Paraíso, mas eram só os faróis de mais um carro estacionando.
 
De volta à estrada, num dos breves intervalos de paz que meu intestino proporcionava, refleti sobre o culpado daquilo tudo. Revolvi a memória e encontrei meu café da manhã habitual e um jantar leve sem ingredientes que levantassem suspeitas. No entanto, uma cena de mim mesma devorando uma coxinha de procedência duvidosa no lanche do dia anterior piscou na minha mente como um alarme acusatório. Era ela. Aquela que merecia todas as penalidades possíveis, mas estava condenando a mim à morte.

(Aliás, nunca pensei que a palavra coxinha pudesse, depois, me remeter a lembranças tão perniciosas. Não é à toa que virou sinônimo de gente conservadora e atrasada; e, hoje, revisitando esse passado obscuro, concluo que tal comparação soa de fato coerente. Afinal, o que a coxinha queria, se não conservar meu intestino em ruínas e atrasar minha viagem para sempre?)

Me arrependendo do dia que em que nasci por ter feito o lanche divisor de águas, me dirigi quase com indiferença ao banheiro do próximo posto. Joguei todo o meu peso no assento do vaso; nenhuma doença do mundo que eu pudesse pegar ali seria pior do que o que aquela viagem estava me reservando. Saí com a testa brilhando, como uma gladiadora que acabara de vencer uma batalha, digna de abalar a autoestima de qualquer lote de Activia.

A manhã chegou. Eu ainda contava quantos minutos de sossego teria até a próxima leva de cólicas. Era como entrar em trabalho de parto a cada quarto de hora – mas o filho vinha à prestação. É verdade que no começo eu ainda tinha alguma exigência, como “parar num lugar mais limpinho”, mas agora podia ser qualquer lugar que não as minhas próprias calças: um penico, uma moita, um buraco no chão.

Ao entrarmos, enfim, na cidade do Rio de Janeiro, sob seus famosos 40 graus, comprovei que Deus provavelmente pouco conseguiu fazer diante daquela mandinga forte: um engarrafamento quilométrico na Avenida Brasil nos aguardava. Toca pro inferno, motorista. A sorte foi que, pouco depois, um posto surgiu à nossa direita. Com um rolo de papel-toalha debaixo do braço, entrei no banheiro pela última vez. A vergonha tinha ficado pra trás, a vários quilômetros de distância, em alguma das descargas que dei enquanto a noite passava.

Não, uma coxinha não ia estragar meu Carnaval. Minha próxima parada na cidade maravilhosa foi no Bondinho do Pão de Açúcar, bem longe de azulejos brancos, olhando para a linda paisagem por trás das janelas. Vitoriosa, fiz uma banana mental para as torturantes seis horas de viagem, rindo diante daquela ironia: sambei.


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