23 junho 2018

HEREDITÁRIO: 0% jumpscares, 99% perturbador, 1% vagabundo

postado por Manu Negri


Comentários sem spoilers


Eu quero começar este texto mais uma vez enaltecendo o estúdio A24, responsável por distribuir os excelentes Moonlight, Lady Bird, A ghost story, Ex-Machina, Projeto Flórida e O lagosta, entre outros, também conhecido por dar liberdade criativa aos autores de seus projetos. Ultimamente, este nome tem ficado forte por lançar alguns filmes de terror que fogem das produções de sustos baratos, como Ao cair da noite e A bruxa. Hereditário é mais um, graças aos deuses, que chegou para engrossar o grupo.

Esses "novos filmes de terror", como eu os encaixava até pouco tempo, na verdade não estão inventando a roda, e sim trazendo-a de volta para o cinema. É um retorno ao horror clássico muito feito há várias décadas, como O exorcista e O bebê de Rosemary, afirmando que a sétima arte vive momentos cíclicos. Não à toa, Hereditário vem sendo descrito, desde sua aparição no Festival de Sundance, como o "novo O Exorcista"; não em termos de trama, mas em termos de narrativa, com a faca, o queijo e a goiabada na mão pra se tornar um novo clássico do gênero neste século.

A história do filme não é originalzona. Mas a forma como ela é contada é a grande sacada. Acho que Hereditário é um bom exemplo de como a experiência do espectador ao longo da projeção é tão ou mais importante que a conclusão dela. Desde o início existe o prenúncio de uma tragédia, como uma semente plantada na nossa viagem sensorial que cresce e floresce a cada cena e detalhes nem um pouco apresentados ao acaso, nos provocando a montar um quebra-cabeças.

A primeira e elegante cena do filme
Tudo começa com a morte da reclusa matriarca dos Graham, que, mesmo longe de cena, tem sua sombra ainda pairando sobre a família, principalmente sobre a solitária neta adolescente, Charlie, de quem ela sempre foi extremamente próxima. Em meio ao enfrentamento do luto de diferentes formas pelos personagens - mãe, pai, filho e filha -, uma nova tragédia abala os elos que os unem e transformam suas vidas em um crescente pandemônio.

Isso é tudo o que você precisa saber pra assistir a Hereditário. O famoso "quanto menos, melhor". O importante, aqui, é não ter muita noção de que momentos te deixarão com aquela freada na cueca. Volto a enfatizar: Hereditário NÃO tem jumpscares, mas trabalha de forma brilhante uma atmosfera de tensão, angústia e medo através do roteiro, montagem, atuações, trilha sonora, mixagem de som, design de produção e direção, obviamente. No cy da plateia no cinema não passava nem sinal de wifi. 

A estética do filme é essencial em sua narrativa. A maneira simples, mas inteligente, como a fotografia trabalha as imagens, a luz e a sombra provoca sensações muito mais sufocantes e assustadoras em nós do que uma trilha aumentada no momento "certo", junto da aparição "repentina" de um monstrinho ou de um cara com máscara e serra elétrica na mão. O som, aliás, funciona muito bem em Hereditário tanto nos ruídos incômodos para acelerar nossa ansiedade, quanto nos silêncios perfeitamente colocados nas cenas que, ao invés de proporcionarem alívio, conseguem desconforto. Parecia que o diretor, Ari Aster, sabia exatamente o que estava fazendo em cada segundo de filme, que, a propósito, é o primeiro longa no currículo do filho da mãe.

"Essa vai pro álbum, amor"
Me impressionou como o design da casa da família, ainda que propositalmente grande para os personagens - num paralelo às maquetes em que a esposa/mãe trabalha -, tenha transformado as interações entre eles em casulos claustrofóbicos, potencializados pelas performances dos atores. Milly Shapiro, por exemplo, quem interpreta a garota Charlie e ilustra a capa deste post, a princípio incomoda por sua aparência, mas simultaneamente intensifica nosso mal estar enquanto público por conta de seu comportamento bizarro (ouça na sua cabeça o "cloc" que ela faz com a língua constantemente) e fragiliza a personagem, deixando-a muito mais humana, e não a típica criança assustadora de filmes de terror. Alex Wolff, como o irmão mais velho, Peter, traz reações genuínas de puro pavor, desespero e angústia, seja em cenas explosivas ou que requerem uma internalização do sofrimento. Gabriel Byrne é Steve, o pai da família e ponto sensato que nos conecta com o aspecto racional da coisa e que, com poucas e sutis expressões, transmite a preocupação com o rumo que a rotina dos Graham está se transformando, além do carinho pela esposa e filhos. Ann Dowd, quem participa fora desse núcleo, eu já considero maravilhosa desde Compliance, The leftovers e The handmaid's tale (TIA LYDIA QUE A SENHORA POSSA ABRIR) e aqui é sensacional como esta mulher de respeito trabalha seus olhares e gestos calorosos que parecem conter, num segundinho e outro, algo de ameaçador e cínico. A cereja do bolo (e que cerejão, bicho) é a Toni Collette, a esposa/mãe Annie. Eu sei que o Oscar é um desgraçado e tem poucas chances de nomear esta atriz em 2019, mas que ela merece muitos prêmios, merece. Em uma única cena de Hereditário - que envolve um jantar a três -, ela consegue variar com honestidade emoções contrárias da personagem, saindo do autocontrole forjado à erupção em poucos minutos. 

Apesar de eu ter saído da sessão como se tivessem sugado minhas energias e secado todas as pimenteiras num raio de 1km do shopping, o 1% vagabundo do filme fica por conta de seu terceiro ato, que perde a sugestão e a intensidade que vinha trazendo até então. Não que seja suficiente pra "estragar" tudo o que foi construído, mas existem alguns clichês de gênero que, em plena era de youtuber ganhando dinheiro com banheira de Nutella, não têm impacto sobre o público.


PODEM ENTRAR, SPOILERS



Se você NÃO assistiu ao filme ainda, não leia esta parte do texto e pule para o último parágrafo da página. Se, ainda assim, você quer prosseguir por aqui e estragar sua experiência, merece um pescotapa.

Hereditário, como os outros filmes de terror da A24, traz subtextos enriquecedores para a trama. Se formos olhar para a camada de cima, a superficial e que está escancarada na tela enquanto assistimos, a história toda começa antes da Ellen, a avó da família, falecer. Os Graham, ou melhor, os Leigh - antes de Annie se casar com Steve Graham -, possuem um triste histórico de doenças mentais. Ellen foi diagnosticada com transtorno dissociativo de personalidade e demência, o que causou um distanciamento entre ela e a filha; o marido sofria de depressão psicótica a ponto de morrer de inanição, por se recusar a comer, e o filho esquizofrênico se matou depois de várias tentativas da mãe de "colocar pessoas dentro dele". Isso, aliás, tem tudo a ver com a vida secreta de Ellen anos atrás: ela era líder de um culto satânico que tinha como objetivo trazer à terra Paimon, um dos nove reis do inferno, que, para isso, só poderia ocupar um hospedeiro do sexo masculino. Ou seja, se não deu certo com o filho suicida, teria que dar com o neto.

O problema é que, por causa do afastamento de Annie em relação a Ellen, Peter foi criado longe da avó. Mas, mesmo que Annie confesse em determinado ponto do filme que tentou abortar Peter de diversas formas, o culto, de alguma maneira, conseguiu que ele nascesse. Foi na segunda gravidez que, tomada pela culpa dos anos de distância, Annie deixa que a mãe tome conta da filha Charlie. É aí que, desde o nascimento, Charlie se torna Paimon e a relação das duas passa a ser de adoradora do tinhoso e tinhosinha, e não avó e neta, numa obsessão de criar a criança praticamente sozinha para que os planos do culto aconteçam como planejado.     

O fato de Charlie ser uma menina "indesejada" pela avó é refletido na cena em que ela diz pra mãe que Ellen queria que ela fosse um menino, e em seu próprio nome, Charles - essencialmente masculino -, bordado em um dos capachos feitos pela senhora. Mas o prosseguimento do ritual no corpo masculino encontra sucesso após a morte de Charlie, quando Paimon digivolve chegando, enfim, a Peter. A partir do momento em que Annie aceita realizar o contato com o mundo espiritual através do passo a passo de Joan (Ann Dowd), outra membra do culto, o espírito/demônio tem liberdade de possuir outros corpos, uma vez que foi libertado de Charlie através da decapitação, passando pela Annie (morta da mesma forma) e chegando ao garoto.

Linda história.

A hereditariedade do título do filme, nesse contexto, se relaciona com esse mal passado de pessoa pra pessoa na família. Inclusive, existe uma cena no início da trama em que Peter está em uma aula de literatura estudando justamente tragédia grega, em que professor e alunos discutem sobre as pessoas serem meros peões em um cenário no qual não existe saída. Isso pode ser tanto uma interpretação para a família Leigh-Graham, já que desde antes das crianças nascerem os admiradores do capiroto já os observavam e tinham planos para eles, quanto pode ser para o subtexto de doenças mentais. Essa seria a camada de baixo do filme.

Sabemos que depressão e esquizofrenia, entre outras, são hereditárias, e sabemos que os antecedentes de Annie sofriam dessas doenças. Logo, se são fatores genéticos que as determinam, Annie pode ter começado a manifestar sintomas de alguma doença mental, assim como Peter, já que ambos têm alucinações provavelmente desencadeadas pelo trauma da perda. Peões em um cenário sem saída ou, sendo mais sofisticada, bonecos em uma maquete. A alegoria da maquete nesta interpretação me soa incrível, se consideramos que ela representa uma caixa onde os habitantes são bonecos frágeis e manipuláveis, "presos", que não têm como escapar de sua herança. Além disso, não é só o trabalho através do qual Annie expressa suas emoções e tem algum controle sobre a situação, como representa o ponto de vista dela sobre a história. Lembram que a primeira cena do filme é a câmera entrando, literalmente, dentro de uma miniatura de casa para começar a narrar? Dessa forma, não é por acaso que Steve, o pai, mostra-se o único são daquele lugar. Afinal, se as doenças são hereditárias e ele não tem o sangue da família Leigh, faz todo o sentido estar imune.

Hereditário pode ser um filme sobre possessão, sobre enfrentamento do luto, culpa e sobre os demônios - os figurativos - que você carrega e passa para frente.


Apesar da frase "Este filme não é pra todo mundo" soar arrogante, estou cada vez mais certa de seu valor. Filmes que dividem opiniões geralmente me chamam a atenção, e, no caso de Hereditário, colecionar ótimas críticas de especialistas e não ser sucesso com o público que não curte trabalhar a massa cinzenta já é quase garantia de ser bom. Recomendo fortemente que você assista no cinema de cabeça aberta e livre de spoilers, para ter uma experiência completa e passível de julgamento justo.

FUCK THE POLICE, FUCK THE PEOPLE: IN A24 AND ROTTEN TOMATOES WE TRUST.


Nota:




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