26 novembro 2014

Vagne & Váguin & Vagui

postado por Manu Negri



Ainda não tenho certeza sobre o nome do morador de rua que puxou papo comigo na mesa do bar, mas sei que ele está com o meu pendrive.

Eu e Letícia comíamos nossas batatas fritas com bacon de boa com a vida – talvez não tão de boa, depois de repararmos numas baratas fazendo tour fora do bueiro –, quando ouvimos uma pisada forte no chão bem atrás da gente.

– Pronto, moça. Matei.
– Matou?! O quê, meu Deus?
– A barata. – o rapaz maltrapilho apontava para o chão com o alívio e o orgulho de quem se livra de um assassino em potencial por legítima defesa.
– Ah, tá, nossa... pô, brigada, moço.
– É, pode ficar tranquila, eu matei ela, ó.

Me endireitei na cadeira. Lá estava mesmo a bichinha (asquerosa), agonizando de barriga pra cima, com as perninhas remando o ar.

Ele voltou a vaguear por outro lado. Genuinamente agradecida, voltei a comer as batatas, achando que a maior emoção da noite já tinha acontecido. Mas, quando Letícia começou a se levantar da mesa, apertada pra ir ao banheiro, o rapaz reapareceu à nossa direita num passe de mágica.

– Me dá um cigarro? – pediu, indicando com a cabeça o maço de Lucky Strike mentolado de Letícia.
– Poxa, moço, só tem um agora.
– Tá certo, tá certo, é seu. – e saiu.
– Vou lá, vigia minha bolsa.

Abracei a bolsa com um braço, deixando o outro livre pra apanhar mais bacon, porque não sou boba.

– Pode ficar tranquila que eu não sou ladrão não, moça, não vou pegar a bolsa.
–  Ah, imagina, não estou segurando por sua causa. – era verdade, apesar daquela onipresença parecer um pouco assustadora. – Bom, o cigarro é o último, mas pode comer batata frita, se quiser.
– Ah, não... Na verdade eu queria uma cachaça.
– Cachaça, moço? Isso não faz muito b...
– Qual o seu nome?
– Ham... Manuela.
– Manuela? É o nome da minha filha!
– Jura?! – fiquei surpresa.
– É sim, ó, tenho até uma tatuagem – ele arregaçou a manga do casaco preto e mostrou uma tatuagem que muito se assemelhava a um rabisco de caneta Bic. Antes que eu pudesse ler mais do que um “ELA”, ele puxou o braço de volta.
– E você, como se chama? – perguntei.
– Vagne.
– Vagner?
– Váguin.
– Quê?
– Vagui.
– Vagui?
– É. Com V de Vitória. Quer ver minha outra tatuagem?

Minha resposta aparentemente não importava: Vagui (ou Vagne) começou a tirar o casaco e a subir a blusa. Meu medo era que ficasse nu, ali, na minha frente; como lidar?

– Lê a frase aí atrás – ele virou de costas, deixando à mostra um outro rabisco Bic, dessa vez mais elaborado.
– “Amor de verdade só o de...”
–“Mãe”! Isso mesmo! – vestiu a roupa rápido, virando-se pra mim. – Maior verdade de todas, num é?
– É sim, Vagui.
– Minha mãe morreu tem uns anos, foi horrível. De cirrose.
– Nossa, sinto muito. Tá vendo? E você querendo beber cachaça.
– Ah, não, foi de cirrose nãaaao, foi do coração. Deu problema nos vaso.

Percebi a reação de um menino pego na mentira.

– Me dá umas moedinhas? – Vagui pediu. Talvez disfarçando.
– Vou ver o que tenho. Mas não vai gastar tudo com bebida, heim?

Abri o porta-moedas da carteira e raspei tudo o que tinha. Pelo peso do punhado nas mãos, dava pra comprar uma, duas, três pingas. Até uma Catuaba em promoção no Carrefour. Entreguei com pressa pra ele, enquanto Letícia voltava a ocupar a cadeira à minha frente.

– Moça, qual é meu nome?
– Uai, num sei. – disse Letícia.
– É Vagui. – esclareci.
– Hoje eu fui no cemitério e lavei o túmulo da minha mãe. Fiz errado, moça?
– Ô, Vagui, claro que não.
– Moças bonitas. Gostei de conversar com vocês. – ele pegou a mão de cada uma de nós e as beijou.
– Nós também, foi um prazer.

Letícia acendeu seu último cigarro. Fiquei observando Vagui se afastar ao longo da fila de mesas, dançando com um gingado que jamais terei nessa encarnação, numa felicidade causada pela música ao vivo do bar da esquina oposta, por todas aquelas moedas ganhas, ou pelas duas coisas. Sorri sozinha, imaginando os centavos de peso argentino perdidos no meio delas (sem utilidade alguma), junto com o mini pendrive que sempre guardo no porta-moedas...

O arco feliz que era a minha boca bruscamente murchou, como um balão espetado por uma agulha.

– Meu Deus, Lets, meu pendrive tá com ele.
– Como é que é?
– Eu sempre o guardo dentro da carteira e, na hora de entregar as moedas pro Vagui, deve ter ido junto.
– Tem certeza?
– Tenho – mentira, não tinha. Mas, antes que eu terminasse de verificar desesperadamente todo o perímetro do porta-moedas, Letícia já estava chamando-o de volta. Vagui interrompeu o duplo twist carpado do seu samba no pé e nos olhou, como eu suspeitava, desconfiado se seu nome era mesmo esse.
– Sabe o que é? Na hora que a Manu te deu as moedas, provavelmente o pendrive dela foi junto.

Vagui certamente não sabia o que era um pendrive, mas reagiu como se fosse o elixir da pedra filosofal.

– Não tá comigo não, eu juro! Não sou ladrão não, moça!
– Calma, Vagui, não estamos dizendo isso! É só que, sem querer, eu posso ter entregado junto das...
– Não tá comigo, eu não peguei nada, não peguei!

Contestar era inútil. Vagui começou a tirar tudo o que existia de dentro dos bolsos da calça e do casaco, deixando a bolsa do Gato Félix no chinelo. Entre papeis, cartelas de comprimidos e palitos de fósforo, ele me mostrou um montinho de moedas.

– Eu disse! Não tá comigo esse negócio não!
– Tudo bem, tudo bem! Ah, sabe o que aconteceu? Acho que eu deixei esse pendrive jogado aqui na bolsa e estou confundindo. Não está mesmo com você.
– Tem certeza? Porque eu não peguei, juro, moça.
– Fica tranquilo, Vagui. Foi isso mesmo o que houve, tá? – Letícia resgatou todo o seu talento para atriz da Malhação e se juntou a mim.

Cadê o sinal de wi-fi?
Ele se acalmou. Eu, não.
Enquanto Vagui retomava seus passos de dança voltados para a banda do bar da outra esquina, eu morria por dentro tentando pensar no que estava dentro do pendrive – que, não dando sinal de vida em nenhuma parte da minha carteira, era certo que balançava num daqueles bolsos de Vagui que levavam à quinta dimensão.

Foi aí que lembrei: não havia fotos nem documentos importantes salvos. Em compensação, o pendrive estava recheado de filmes pedantes. A cena de Vagui numa Lan House assistindo a O império dos sentidos de repente pareceu muito plausível. Meu bigode começou a suar.

– Calma, véi. – disse Letícia, sugerindo que essas duas palavras deveriam ter um efeito mágico tranquilizador. – Em que mundo o Vagui poderia usar um pendrive? Ainda mais o seu, que parece uma peça de lego inútil. Ô, Vagui! Você sabe o que é um pendrive?
– Moça, já disse que não peguei nada! Nem sei o que é isso!
– Vagui, fica tranquilo, está na bolsa mesmo. Letícia, para de semear a discórdia.

Meu medo era que ele dissesse "Está com você mesmo? Então mostra." Comecei a pensar no que deveria responder caso isso acontecesse, quando Vagui, para provar sua inocência, arriou as calças de verdade. Minha nossa, pode ficar com tudo: o pendrive, as batatas, o celular, as chaves de casa.

Fechei os olhos numa tentativa patética de não ficar traumatizada, mas Vagui voltou a vestir as roupas no meio do caminho, como se mudasse de ideia. Já estava entretido novamente com outra coisa: riscar fósforos e jogar na calçada.

Na calçada embaixo da minha cadeira.

– Moça, eu não peguei nada, não tá comigo. Juro. – Vagui, talvez percebendo meu pânico sobre a cena, se aproximou ainda mais. Parecia sinceramente preocupado, mesmo segurando um palito aceso a centímetros do meu rosto, o que só me fazia imaginar meu cabelo pegando fogo de diferentes maneiras.
– É sério, Vagui, relaxa... foi um mal entendido. Está mesmo na minha bolsa.
– Tudo bem. – ele se sentou do meu lado, dando por satisfeito, encurtando a barra da calça até mostrar um ferimento redondo na canela – Tá vendo isso aqui? É tiro de revólver.
– Sério?!
– Tá saindo até aguinha.
– Creindeuspai.    
– Manu, fechei a conta. Podemos ir embora – perdi o momento em que Letícia foi até o caixa do bar e me deixou sozinha pra morrer, mas fiquei agradecida.
– Temos que ir, Vagui. Até mais.
– Gostei de vocês, moças. Boa noite, vão com Deus. – ele sacudiu nossas mãos com alegria, não sem antes futucar a aguinha da perna.

Segui Letícia pela rua acima até o carro.
Olhei pra trás uma vez.
Duas vezes.
Esqueci do pendrive. Fiquei pensando no jeito engraçado como nossas bolhas estouram de vez em quando.

No dia seguinte, quando coincidentemente passei pela mesma esquina do bar para voltar pra casa, procurei o Vagui com os olhos, me perguntando de uma forma infantil que me é peculiar se a tecnologia não aproximava mesmo as pessoas.


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