16 agosto 2016

Kaoma & eu

postado por Manu Negri


É verdade que, quando adolescente, eu tinha poucas ambições na vida. Não pensava muito na minha futura profissão, não tinha nenhuma paixão à vista e não sonhava em dançar valsa em uma festa de debutante pomposa. Meu único desejo, que consumia horas do meu dia em pesquisas, leituras e zapeadas no Animal Planet, era ter um golden retriever. E você, Kaoma, por acaso era um. Há especialistas em pedigree que talvez pudessem ter discordado da pureza do lance, mas eu nunca liguei se sua altura não tinha os centímetros exatos ou se sua pisada não correspondia à da família dos retrievers.

Naquela época, as pessoas não eram tão julgadas quanto a querer ter um cachorro de raça ao invés de adotar um vira-lata. Acho que bicho é bicho e, independente de misturas genéticas, merece ter um lar com donos carinhosos. E o seu esteve repleto de amor antes mesmo de você chegar, porque era com você que eu sonhava.

O momento em que olhei pra sua carinha de olhos caídos ainda é muito vívido na minha memória. Talvez não tenha sido a melhor das apresentações, já que a viagem de avião do Rio até Vitória provavelmente te traumatizou e fez você vomitar o carro inteiro durante o trajeto até em casa. Mas tivemos muito tempo para nos conhecer depois. Com muitos outros episódios escatológicos, sim, envolvendo mais enjoos no banco de trás e você comendo cocô antes de vir me lamber. Mas nada que amigos não possam esquecer.

Ao longo desses 13 anos, você presenciou alguns dos períodos mais marcantes da minha vida. Conheceu meus melhores amigos, meu primeiro amor. Me viu entrar na faculdade, levar pra casa meu diploma, conseguir o meu primeiro emprego e, depois, conseguir o segundo em outra cidade. Aprendeu a sentar, esperar, a nadar (ou já nasceu nadando?), a andar sem coleira na rua e até a parar na faixa de pedestres. Mas também foi uma grande professora na arte de ensinar a paciência, o carinho incondicional, o perdão, a aceitação e como viver mais plenamente. Carpe diem. Aproveitem o dia, meninos. Façam de suas vidas uma coisa extraordinária.

E você aproveitou. Você teve uma vida boa. Isso estava claro na última vez em que a vi, com os pelos do focinho brancos como nunca e o andar desajeitado e lento. Velhinha. Mas, ainda assim, me recebeu de viagem com o mesmo abanar de rabo frenético que tinha quando filhote e aquele barulho engraçado que diz "estou sorrindo. Estou feliz em te ver". Obrigada, Kaoma. Parece até que você sabia que era essa a última boa lembrança que eu deveria guardar de você.

Não tenho certeza se acredito em paraísos, mas acho que, se você não virou uma estrelinha, está vivendo agora em cima das nuvens, mostrando os dentes pra outros catiorríneos, tomando o sol da manhã, se empanturrando de guloseimas (sem ser cocô, por favor) e tendo alguns daqueles sonhos, cheios de tremeliques, com a família que te amou aqui embaixo.

Escrevo, sim, uma carta para alguém que não sabe ler.

Muito menos falar.

Mas que entendeu como poucos uma linguagem que dispensa intérpretes.


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