14 outubro 2016

Auschwitz: o testemunho de um médico

postado por Manu Negri

Portão principal de Auschwitz com a inscrição "O trabalho liberta"

Só de ler a palavra "Auschwitz" em qualquer lugar já dá um arrepio na espinha. Isso porque o único acesso que temos às atrocidades ocorridas por lá vem de livros, filmes, documentários, reportagens e entrevistas. Imagine vivendo de perto.

Muito já foi falado sobre o Holocausto, quase à exaustão, em todos esses tipos de mídia. Mas acredito que o livro Auschwitz – O testemunho de um médico, escrito por Miklos Nyiszli, seja uma contribuição diferente. Afinal, além de ter sobrevivido pra relatar à História, o cara viveu no campo de concentração durante meses, com certas regalias, sob comando do conhecido dr. Mengele – que se tornou infame por ter atuado como cientista durante o regime nazista. E, tão importante quanto, o livro serve de registro em uma era que, por incrível que pareça, tem gente com a capacidade de questionar a existência desse genocídio. Aliás, a título de curiosidade: em 2007, entrou em vigor uma lei sancionada pela União Europeia que pune com prisão quem negar o Holocausto. Em 2010, a UE também criou a base de dados europeia EHRI para pesquisar e unificar arquivos sobre o assunto.

Miklos foi um judeu criminologista húngaro antes de trabalhar forçadamente em Auschwitz, como médico do Sonderkommando. Os Sonderkommandos eram os grupos de judeus recrutados assim que chegavam aos campos, obrigados a executar tarefas penosas que os soldados alemães não gostariam de fazer, como enterrar os corpos dos prisioneiros mortos e limpar as câmaras de gás. Em troca, podiam comer melhor que o restante dos judeus, vestir-se bem, tomar banhos e dormir em locais mais decentes, mas eram eliminados a cada 3 ou 4 meses para dar lugar a novos grupos. Agora, imagine só como devia ser para os Sonderkommandos ter que lidar com a morte de seus companheiros diariamente, ou até acabar encontrando um, pai, mãe ou filho entre os cadáveres? PESADÍSSIMO, terrível, cruel demais.

O maior trabalho de Miklos era realizar autópsias, cujos relatórios eram recebidos pela equipe do dr. Mengele. Seu principal objetivo com esses procedimentos era realizar pesquisas, principalmente com gêmeos, para tentar encontrar "anomalias" que justificassem a propaganda de que a "raça" judia era inferior. Certa vez, Miklos identificou uma doença congênita nos músculos e raquitismo retardado manifestada por uma deformação nos pés de um prisioneiro; ou seja, nada fora do comum, mas que se tornou material valioso nas mãos de Mengele.

"Longe de ser uma anormalidade extraordinária, aquilo é comum a milhares de homens de todas as raças e climas. Mesmo um médico de clínica reduzida, frequentemente se depara com isso. Mas os dois casos, por sua própria natureza, poderiam ser explorados na propaganda. A máquina de propaganda nazista nunca hesitou em mascarar suas mentiras monstruosas com uma face científica. O método sempre funcionara, pois aqueles a quem a propaganda era dirigida tinham pouca ou nenhuma faculdade crítica, e aceitavam como fato consumado tudo que trazia o selo do regime."

Só mais uma das bizarrices que aconteciam lá. Miklos relata que reconhecia que o que fazia em seu trabalho não se tratava de um instituto de ciência, mas de uma pseudociência. Quando não ajudava involuntariamente Mengele a construir a origem dos nascimentos duplos ou a teoria da degeneração dos anões e aleijados, ele precisava relatar em suas autópsias as causas de mortes de diversos prisioneiros, relacionadas na maioria das vezes à fome, exaustão e péssimas condições de higiene, como a desinteria.

"A disenteria é causada pela aplicação da seguinte fórmula: pegue qualquer indivíduo — homem, mulher ou criança inocente — arranque-o de seu lar, ponha-o junto com centenas de outros num vagão fechado no qual um balde de água foi anteriormente colocado de maneira estratégica, e os remeta, depois de terem passado seis semanas num gueto, para Auschwitz. Ali empilhe-os aos milhares em barracões que não serviriam nem de estábulos. Como comida, dê-lhes uma ração de pão dormido feito de castanha silvestre, uma espécie de margarina cujo ingrediente básico é linhita, trinta gramas de chouriço feito de carne de cavalo doente que, no total, não excederá a setecentas calorias. Para ajudar a descer essa ração, meio litro de sopa feita de urtiga e ervas daninhas, sem nenhum sal, nenhuma gordura e nenhum cereal. Em quatro semanas a disenteria invariavelmente aparecerá. Três ou quatro semanas mais tarde o paciente estará 'curado', porque morrerá, apesar de qualquer tratamento que possa receber dos médicos do campo."

Capítulos chocantes não faltam no livro. Além da desumanidade atordoante presente em todos os detalhes, em toda a rotina dos prisioneiros – sejam Sonderkommando ou não –, há a comoção profunda do leitor em relação àqueles que, mesmo conscientes de que não haveria portas de saída em Auschwitz, tentavam deixar mensagens contando os horrores do lugar, enterrando-as nos pátios dos crematórios ou escondendo-as em objetos para serem entregues a soldados do SS. Os prisioneiros mais inocentes, incertos de seus destinos, eram orientados a enviarem cartões postais para a família (porém, proibidos de mencionarem Auschwitz ou Birkenau , apenas Am Waldsee, uma cidade de veraneio localizada perto da fronteira suíça). As respostas eram queimadas.

Se já temos relatos suficientes que comprovam que judeus eram tratados como qualquer coisa na Alemanha nazista, menos como gente, pense que um dos hobbies do dr. Mengele era colecionar pedras renais dos mortos. Por isso, a ordem entre os médicos patologistas do Sonderkommando era a de retirar pedras quando descobertas nos cadáveres em dissecação, lavá-las e guardá-las. Repugnante, eu sei.

Lembrando que não há como criticar uma narrativa aqui, um "storytelling". Quer dizer, até dá, mas quem quer? Miklos era médico, não escritor, e a relevância de "O testemunho de um médico" não é ser um livro autobiográfico bem escrito. Repito: é um registro histórico. Aliás, tive a impressão de que os momentos em que Miklos se sentiu mais à vontade foi quando narrou as sessões de autópsia, descrevendo detalhes de procedimentos, órgãos e algumas doenças – provavelmente por ser a área que ele mais tinha domínio, e também por ser uma forma de resgatar sua humanidade e identidade que existiam fora de Auschwitz. De qualquer forma, num geral, as alegorias e contextualizações de cenas são rasas, mas seu trabalho não deixa de ser valioso por isso.  

Se você tem a cabecinha forte no lugar e não se impressiona fácil (eu me impressiono relativamente fácil, mas não a ponto de rejeitar uma leitura do tipo, por exemplo), dá para baixar o livro gratuitamente bem aqui.

"Nós aprendemos que tudo é efêmero e que nenhum valor é absoluto. A única exceção à regra: a liberdade."


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