26 agosto 2015

Falta de sobra

postado por Manu Negri


Enquanto arrumava os caixotes velhos do quarto que servia de despensa, achou o baú das correspondências que recebia desde a adolescência. De dentro, retirou o primeiro envelope da pilha e encontrou uma carta de três páginas de folhas de caderno. Datava de seis anos atrás.

"Nos filmes e nos livros românticos, o amor supera tudo, absolutamente tudo. Especialmente a ausência. A mocinha espera na varanda de casa, todos os dias, o amado voltar da guerra. Nem uma foto recente, uma carta, um postal, uma notícia sequer. Mas ela espera paciente, convicta, pelo dia em que ele retornará e enfim ficarão juntos pra sempre.

É bonito, é romântico, mas não funciona assim na vida real. Não digo que o amor não seja capaz de relevar um punhado de coisas, mas é que sinto sua falta demais. E é tão forte que precisaram inventar uma palavra só pra ela: saudade. Pra amenizar a dor, eu imagino o abraço que te darei quando te vir. Quando, eu não sei, mas esse dia virá novamente. Imagino meu reflexo nos seus olhos, o cheiro do perfume, o sorriso estampado. Aí, o frenesi de amor é interrompido em quatro ou sete dias até nos separarmos outra vez. E a tortura recomeça.

É estranho, cruel e injusto, mas sei que ainda não podemos fazer nada. E enquanto não fazemos tudo, eu te abraço o mais forte que consigo, como se pudesse arrancar um pedacinho seu e guardar pra mim nas minhas noites de solidão. Então aguardo como no filme, mas não sento na varanda. Deito na cama, no escuro, sabendo que vou dormir só. Mas não haverá distância que não resista, e eu sei que a gente se espera o tempo que for. Morrendo um pouco a cada noite, amando mais a cada manhã, ansiando pelo dia em que enfim nos encontraremos, sem desencontros, em algum salão de desembarque."

O rosto já estava quente e molhado, mas havia um sorriso. Um barulho de chaves vindo da cozinha, um ruído de sacolas plásticas; alguém estava chegando das compras. Fechou o baú, levantou-se e saiu pela porta. Uma passagem de avião amarelada que estava no envelope flutuou no ar até cair. Era só de ida. E ficou ali, como todas as outras coisas que não tinham mais volta.



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