Tirando uma cena razoavelmente baranga de Um amor para recordar, em que o mocinho do filme realiza o sonho da mocinha de estar em dois lugares ao mesmo tempo simplesmente se posicionando na divisa entre duas cidades, físicos continuam debatendo a possibilidade desse princípio. Em Outsider, você provavelmente vai se juntar a eles.
Concluído em maio deste ano pelo autor que mais dá as caras neste blog e na minha estante, Stephen King, o livro alcançou o primeiro lugar na lista de mais vendidos da Publishers Weekly, além de passar semanas entre os bestsellers do New York Times. No Brasil, traduzido e lançado rapidamente pouco tempo depois, ele entrou no ranking da Veja, da Folha e do PublishNews. Além de ter nascido campeão de vendas, Outsider já teve os direitos comprados para virar uma série de 10 episódios, roteirizado por Richard Price, responsável pelo sucesso The wire, da HBO. Tá bom ou quer mais, poc?
Fiz meu pedido na pré-venda, como boa escrava do King que sou, e em poucos dias recebi meu cheiroso exemplar com uma capa lindérrima, baixo relevo, título original e tudo (ótimo pra fingir no ônibus que está lendo livro em inglês). Logo nas primeiras páginas, fui conquistada pela costurinha de narrativa que o King faz, se assemelhando um pouco com o que acontece em Carrie, a estranha, que é intercalar acontecimentos do presente com transição de depoimentos à polícia de Flint City, a cidade fictícia da trama. Aos poucos, descobrimos que lá aconteceu o assassinato horrendo de uma criança, morta a dentadas e estuprada com um galho de árvore, cujo principal suspeito é o cidadão exemplar Terry Maitland, professor da liga infantil de baseball local (inclusive, da vítima). As digitais incontestavelmente compatíveis com Terry encontradas no local e a natureza abominável do crime levaram os policiais a prenderem o professor diante de mais de mil pessoas, incluindo a esposa e as filhas, gerando uma comoção na população. No entanto, tão irrefutável quanto as provas físicas de sua culpabilidade, um álibi se revela na história: no dia e horário do crime, Terry Maitland estava em outra cidade, junto de outras pessoas, em uma conferência literária.
E aí: uma pessoa pode estar em dois lugares ao mesmo tempo?
A maior referência para Stephen King escrever este livro, além de uns folclores latinos, foi o conto William Wilson, de Edgar Allan Poe, sobre a história de um rapaz que encontra, logo no primeiro dia de escola, um colega com o mesmo nome que o seu. Mas as semelhanças não se limitam ao nome, em tudo eles são iguais: na forma de agir, na forma de andar, na forma de falar e de se vestir.
O mistério se foi Terry ou não o assassino se mantém basicamente em toda a primeira metade de Outsider, nos moldes de um romance policial com que estamos acostumados. Investigações, depoimentos, advogados se estranhando e o impacto do acontecimento nas famílias de Flint City, especialmente a do menino morto e a do acusado, intensificado pelo poder que a mídia trouxe ao caso e pelo famoso e terrível fenômeno "fazer justiça com as próprias mãos". Em uma cena icônica, por exemplo, a tal comoção da população é elevada à décima potência graças à espetacularização gerada com a prisão pública de Terry, culminando numa reviravolta que, se eu fosse julgar pela reação de alguns leitores, seria o plot twist mais genial da última década. (mas... né não) A partir daí, Outsider vai por os pezinhos no terreno do fantástico e sobrenatural.
Céticos x crédulos: é melhor considerar que existem MUITO mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia para resolver um crime como esse? É a "batalha" que se inicia na segunda parte do livro, com a entrada surpreendente de um personagem da trilogia Bill Hodges que me incomodou em alguns aspectos. Primeiro, que li apenas Mr. Mercedes, o primeiro livro da trilogia, e levei vários spoilers na fuça. Segundo, que o personagem me atrai e me afasta dele na mesma proporção. Terceiro, que foi um deus ex machina do caralho. "Meus consagrados, entrei aqui na história pra resolver o probleminha de vocês fazendo umas pesquisas no Wikipedia, assistindo a um filme B latino e supondo um zilhão de coisas e OLHA, num é que eram todas verdade mesmo? Que coisa!"
Pra mim, a trama foi perdendo força exponencialmente. A resolução do caso só não foi decepcionante porque me lembrou várias outras resoluções meio preguiçosas e sem peso do King em seus livros, e felizmente estou vacinada e acostumada.
No entanto, bato palmas, como sempre, pra construção de personagens que muso faz. Ralph Anderson, o detetive pé no chão que acaba se revelando protagonista da história, pra mim não é dos mais carismáticos da sua extensa carreira, mas possui um arco que funciona muito bem. Entendemos suas razões de ser "odiável" no começo de Outsider (que pai de família não ficaria enojado e louco para expor o monstro assassino de crianças que poderia por em risco outras vidas?) e somos agraciados por sua redenção, enquanto ele confronta suas próprias crenças e culpa de ter cometido erros de consequências desastrosas.
NOVO MEMBRO NO HALL DE MAIORES VILÕES DO KING?
Há quem diga que o vilão de Outsider merece esse título. GRRRRLL, NOPE! Ele não é podre como Rose, A Cartola, mas passa loooonge de um Pennywise ou Annie Wilkes, além de ter me causado déjà vus em relação ao seu modus operandi.Considerando que o último livro (no sentido de lançado mais recentemente) foda de verdade do King foi Novembro de 63, na minha opinião, estou com um cadim de saudades do autor que ele foi nos anos 1970 e 1980. Deus me dibre de desejar que ele volte a enfiar a cara nos chazim de cogumelo e na cachaça pra escrever coisas louconas, mas a sensação neste momento é a de que os melhores livros dele foram desenvolvidos naquela época.
"Não há fim para o universo."
Ficha técnica
Editora: Suma
Tradutora: Regiane Winarski
Páginas: 528
Compre: Amazon