28 março 2019

Explicando "NÓS": o que tem por trás do filme

postado por Manu Negri



A carreira de Jordan Peele era conhecida por trabalhos voltados pra comédia até o lançamento do seu longa de terror Corra!, em 2017, que abalou as estruturas do mundo cinéfilo com uma história original com pegada no racismo estrutural e um suspense bem construído. O sujeito, no ano seguinte, estava dando as caras em Hollywood apresentando um projeto meio que oposto ao que constava em seu currículo, concorrendo ao Oscar como Melhor Diretor e tendo Corra! candidato a Melhor Filme e Melhor Roteiro Original. Levou o homenzinho nu dourado por este último.   


Apesar dos 98% de aprovação no Rotten Tomatoes e do hype na ocasião do lançamento, minhas expectativas não foram atingidas (você pode conferir meu texto a respeito no link do parágrafo anterior). É um bom filme, merece todos os méritos e tal, mas nhé. Agora, eu remo contra a maré novamente (não que eu goste) com o novo de terror do Peele, Nós: fui fisgada pelo trailer intrigante e o considero um filme muito melhor do que Corra! – ao contrário de grande parte dos seus fãs. 


A história segue Adelaide, que, quando criança, sofreu um trauma enquanto comemorava o aniversário em um parque de diversões. Adulta e com família formada por marido e dois filhos, ela e a trupe viajam de férias para a mesma região que marcou negativamente sua infância. Mas antes fossem as más lembranças a estragarem o passeio; na noite primeira noite juntos, eles são aterrorizados por estranhas figuras que aparecem em frente à casa, revelando serem seus doppelgänger.

Doppelgänger, segundo as lendas germânicas de onde provém, é um ser fantástico que tem o dom de representar uma cópia idêntica de alguém. Hipoteticamente, pode ser que cada pessoa tenha o seu próprio doppelgänger (também conhecido como "duplo-eu").

O que eu mais gostei em Nós é como ele subverte concepções do horror com certa frequência, ao mesmo tempo que usa elementos do gênero pra provocar tensão.

Logo no início do filme, quando vemos a pequena Adelaide circular pelo parque sem a supervisão dos pais, um conjunto sutil de recursos deixa nítido que algo ruim provavelmente vai acontecer, principalmente porque o ponto de vista na câmera é da criança. E uma criança sozinha num parque oitentista prestes a levar um banho de um temporal que se aproxima não traz cenários felizes. Depois, no tempo presente, quando a família está na praia, um dos filhos decide ir ao banheiro, "coincidentemente" ao lado do lugar que provocou o trauma na protagonista, mas a expectativa do público sobre o que acontece é tapeada.   




Sem contar a câmera que te prepara para um jumpscare que você já viu 30948904 vezes em outros filmes e nunca acontece; o caminho do terror de invasão domiciliar que parece ser a escolha definitiva em Nós, mas não é, os momentos cômicos (nunca me diverti tanto num filme do tipo), e a pegada multicamadas da história que tem me agradado demais no gênero, como aconteceu com A bruxa, Hereditário e Mãe! (caso considerem este como filme de horror). 

Conversaremos mais sobre isso na parte com spoilers, porque, afinal de contas, entender o paranauê de Nós é vasculhar as interpretações que ele dispõe. 

Falando em interpretação, Lupita Nyong’o, a protagonista do filme (aliás, seu primeiro protagonismo na carreira!), está fantástica. Além de ser um colírio para nossos óleos, ela é extremamente expressiva e conseguiu estabelecer uma diferenciação brilhante entre a personagem original e a duplicada. Brilhante e assustadora, eu diria, já que a primeira sequência em que a sua doppelgänger surge me deixou com um desconforto fenomenal no cinema. O trabalho da postura, do olhar e principalmente da voz merece muitos méritos, e eu espero que Lupita seja reconhecida por Nós no próximo Oscar. Estou sendo Alice? Espero que não.

O resto do elenco também ganha estrelinha dourada aquiWinston Duke, quem faz o papel de Gabe, o pai da família, é o elemento do humor em cena. Há quem diga que algumas piadas ficaram deslocadas, suprimindo a tensão do momento, e não tiro a razão; mas eu estava tão maravilhada por me cagar de medo e rir na mesma medida, que relevei um pouco. De qualquer forma, Duke também realiza um trabalho bem feito ao criar a dicotomia do cara grandalhão, mas indefeso, na sua versão original, e o duplo que parece duas vezes maior e mais ameaçador.

Em Nós, conheci Shahadi Wright Joseph, quem faz a filha adolescente, e bato palmas pela forma como ela consegue expressar pânico de forma tão natural e, ao mesmo tempo, um sorriso 100% diabólico na versão doppelgänger da sua personagem. O garotinho Evan Alex também está bem, mas não tanto quanto os outros; eu diria que pelo menos o duplo de seu personagem também conseguiu me assustar. Por fim, não é possível passar por esse tópico sem exaltar a performance de Elisabeth Moss, quem eu venero desde que comecei a assistir a The handmaid's tale (a série mais obrigatória dos últimos tempos). Sua participação em Nós é bem menor que a dos outros atores, mas ainda assim ela entrega uma cena memorável e chave para entender melhor a dinâmica originais vs. duplos.

A montagem do filme é outro ponto relevante pra mim, principalmente em uma certa cena em que há uma luta e uma dança simultaneamente, assim como a trilha sonora. As partes com instrumentos de corda desarmônicos é de ranger os dentes, e as músicas licenciadas estão colocadas de tal forma que ajudam a contar a história (em especial, a que a gente entende por baixo da camada literal). 

"Quem pediu iFood?"

AS CAMADAS QUE EXISTEM EM "NÓS" (PROFUNDA ESSA FRASE)

Atenção, dona Teresinha, que a pamonha tá chegando quentinha e recheada de spoilers.

Nós funciona como uma história a ser absorvida em sua camada mais superficial: a de clones criados pelo governo americano como um experimento, vivendo nos túneis subterrâneos do país, que traçam um plano durante anos para subir à superfície e trocarem de lugar com suas versões originais. 

O problema é que essa solução traz várias pontas soltas no roteiro, motivo que me fez tirar meia estrela – ou melhor, meio pote de pipoca – da minha nota final para o filme. Há quanto tempo esse experimento existe? Como ninguém nunca descobriu (tem uma fucking escada rolante no subsolo)? Onde estavam os responsáveis por isso? Como os clones sobreviveram sozinhos por tanto tempo? Por que, enquanto abandonados, viviam com aquelas expressões de psicopatas? Como conseguiram tantas tesouras (e douradas, ainda por cima)? Pra quê a luva? Quem costurou aqueles macacões vermelhos sob medida? A mesma empresa de La Casa de Papel?

São os tipos de questionamentos que, quanto mais a gente faz, mais graça se perde. No entanto, procurar racionalidade o tempo inteiro num filme como esse não parece ser o melhor caminho. Como já diria Glória Perez, temos que nos permitir voar. Foi o que eu fiz; até porque as alegorias de Nós me pareceram muito mais interessantes do que a explicação para a Revolução dos Clones.

Pois bem: fora esse filme literal, Nós pode ser enxergado como uma crítica social ao american way of life. À desigualdade social. Afinal, é a "vida boa", dos privilegiados, representada pela galera original vs. o povo "de baixo", que vive na escassez e sonha com seu lugar ao sol – os doppelgängerPara cada pessoa comendo bem, existe uma outra no mundo passando fome. Para cada pessoa vivendo na riqueza, existe outra sobrevivendo na pobreza. Somos todos iguais, mas sob condições tão diferentes. Não é à toa, como muita gente já apontou, que em inglês o título do filme sendo US faça uma alusão à U.S, os Estados Unidos. Da mesma forma, quando Adelaide pergunta à sua dupla "Quem são vocês?", ela responde "somos americanos". Excluídos, mas cidadãos como qualquer um deles. 

Essa ideia também é reforçada quando conhecemos a personagem da Elisabeth Moss, uma dondoca (amo essa palavra) que vive no topo da cadeia alimentar, extremo oposto da representação dos duplos e símbolo master do estilo de vida almejado pela sociedade. Em determinada cena, quando ela pede para o marido abrir a porta de casa (sabemos que há um doppelgänger dele esperando do lado de fora), este responde (com um uísque 900 anos na mão) que "não quer sair do cantinho dele". Oras, quer metáfora melhor ao privilegiado preso à zona de conforto para não encarar o lado feio da humanidade?  

Então, certíssimos os macacões da cor do comunismo pra simbolizar os clones subindo e tomando os meios de produção.


Já li que essa cor vermelha pode ser referência aos republicanos e que, quando os clones estão juntos dando as mãos para formar a corrente, é uma alusão ao muro do Trump. Quando Adelaide sugere que eles fujam do caos, cita o México como destino. Túneis aparentemente sempre foram um meio de passagem dos imigrantes para os EUA, que foram construídos, aliás, com a força do trabalho de milhares deles, esquecidos nas sombras depois. No atual governo, apareceram até enjaulados, como os coelhos  um simbolozão de multiplicação  que ilustram os créditos de abertura do filme. 

Jordan Peele disse em entrevista que, ao invés de temerem ameaças externas, os americanos deveriam temer a eles próprios (anjo sensato; eu acrescentaria o Brasil nessa farofa). Ou seja, por mais que você não escolha essa interpretação como a do seu coração, ela também parece válida.  

Outra visão que, para mim, também faz bastante sentido, é a dos clones representando as pulsões humanas que insistimos em trancafiar no nosso porão mental. As versões originais dos personagens seriam as pulsões controladas pela sociedade, que dita como são os comportamentos moral e eticamente aceitáveis; ambos partem para uma luta em que nossos ímpetos desejam a todo custo se libertarem da prisão. A tesoura dourada, no caso, pode representar essa dualidade (duas partes iguais que fazem os mesmos movimentos), ao mesmo tempo que é um instrumento para CORTAR (laços, por exemplo). 

Essa quebra de "pacto" também pode ter começado na primeira sequência de Nós, em que a pequena Adelaide desobedece os pais, "rompe" o vínculo daquele momento e conhece seu outro eu pouco depois. É nesse meio tempo, inclusive, que ela vê a placa de Jeremias 11:11 pela primeira vez.   

Outro ponto que corrobora para essa interpretação das pulsões é o conceito de máscaras. Máscara é aquilo que você usa para cobrir seu próprio rosto, esconder-se; não por acaso, o pôster do filme é a doppelgänger principal com uma espécie de máscara do rosto de Adelaide. E você há de concordar comigo que, na superfície, onde se estabeleceu a sociedade, estamos constantemente vivendo sob máscaras em algum nível – obedecendo regras, tentando impressionar os outros e contendo, claro, alguns desejos inconfessáveis.  

Dessa forma, existimos sob um incessante embate entre o eu que somos para o mundo e o eu que somos dentro de nós, representado pela cena em que há luta e dança ao mesmo tempo, entre Adelaide e sua clone. Uma tenta tomar o lugar da outra, mas, em uma dança, não podemos nos esquecer de que os passos do par avançam em harmonia para tornarem-se um só.


SURPRESAS NO FINAL DE "NÓS"




O plot twist da Adelaide ser a verdadeira doppelgänger me pegou, por mais que tenha sido previsível – e clichê – pra muita gente. 

E olha que as pistas foram dadas desde o começo. A própria camisa que a menina ganha de prêmio no parque é estampada com o clipe de Thriller, do Michael Jackson; para quem não lembra, no final da história contada no vídeo o personagem do cantor revela-se um lobisomem (ou seja, não é quem diz ser). Além disso, a versão duplicada da protagonista é a única entre os doppelgänger que sabe falar e parece mais racional, o que indica que ela teve contato com algum tipo de educação. Outra dica é o fato de a clone criança, por sua vez, "voltar" para os pais no parque de diversões sem conseguir se comunicar, mas o filme o tempo todo relaciona isso ao trauma criado dentro da casa de espelhos.  


PARECE QUE O JOGO VIROU, NÃO É MESMO?


No fim das contas, a Adelaide-doppelgänger consegue recuperar a família e eliminar sua versão original (o que me deixou inexplicavelmente meio triste).

Mas aqueles últimos segundos de Nós plantaram uma pulguinha atrás da orelha do público: o sorriso característico dos duplos que Adelaide pareceu especificamente direcionar para o filho caçula, que, em seguida, cobre o rosto com sua máscara de Chewbacca da 25 de Março. Vivendo sob máscaras novamente.

Seria o pequeno Jason um clone?

Há elementos que podem embasar essa teoria de que ele também teria sido trocado. Primeiro, que o garoto solta alguns palavrões na parte ainda inofensiva da trama e os pais ficam alarmados, perguntando onde ele tinha aprendido aquilo. Em outras cenas, ele tenta realizar um truque de mágica que "sente" que já fez antes, mas não se lembra mais como é; ou seja, o Jason original pode ter feito o truque e o doppelgänger só repetiu. 

Isso explica as queimaduras do suposto original: o moleque duplo pode ter mexido em um isqueiro e o Jason, já no subsolo, ao simular a ação, se ferrou. Você pode estar se perguntando se os clones conseguem controlar os originais, até porque, se essa teoria estiver certa, quem morreu carbonizado foi o Jason. A resposta é: provavelmente sim, já que a Adelaide original, vivendo nos túneis, sofria tanto quanto os outros duplos que estavam lá embaixo. Dois corpos, mas uma alma.     

OOOU simplesmente o moleque se queimou porque brinca demais com fogo, já que a maior conexão entre ele e seu duplo é a mágica com o isqueiro; e o ato de abaixar a máscara sobre o rosto tem um significado metafórico apenas para entendermos o status da fake Adelaide.     


O que você acha? Quais as suas teorias? Obrigado, guerreiro, por chegar até o fim do texto. Comenta aí embaixo como você interpretou as alegorias!



"Portanto, assim diz o Senhor: 'Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei'."
Jeremias 11:11 





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